“O Manual do Sexo da Muçulmana: Um Guia Halal para um Sexo Incrível”, um volume fino de publicação própria datada de 2017 por uma muçulmana usando o pseudônimo de Umm Muladhat, é uma compilação de dicas de sexo bem aplicadas. O livro não oferece nada muito novo nessa área, nem algo que mantenha tudo coeso. Até a escrita de Muladhat parece ter sido arrancada das páginas do Cosmopolitan e da literatura erótica autopublicada. Ela promete as leitoras “derrubar você [numa] deliciosa toca de coelho de prazer... [e] ensiná-la a fazer seu marido olhar para você com luxúria desenfreada... transformado-o em um homem que não consegue tirar as mãos de você e transborda com ciúmes quando outros homens sequer olham para você.”

No entanto, poucos dias após seu lançamento, o livro de Muladhat atraiu uma onda de atenção dos meios de comunicação e blogueiros em todo o mundo. Isso tinha pouco ou nada a ver com seus insights, e quase tudo a ver com a novidade percebida de uma mulher muçulmana escrevendo abertamente sobre sexo para leitores muçulmanos.

A surpresa se justificava. Embora o mundo muçulmano seja amplamente disperso e incrivelmente diversificado, os críticos e estudiosos da cultura muçulmana muitas vezes notaram uma reticência em falar sobre sexualidade, especialmente na esfera pública, em muitas comunidades de maioria muçulmana. Quando o sexo surge, geralmente é no contexto de sermão sobre modéstia e segregação de gênero, ou conversas privadas ou aconselhamento matrimonial sobre nada mais que mecânica sexual, envolto em valores heteronormativos. Mesmo nações de maioria muçulmana relativamente liberais socialmente, como Líbano e Tunísia, lutam com a conversa sobre sexo: o Líbano lançou o primeiro programa público moderno de educação sexual do mundo árabe em 1995, mas teve que abandoná-lo cinco anos depois devido à resistência religiosa; nenhuma outra nação árabe tentou ter sucesso onde ele falhou até a Tunísia, no final do ano passado.

Muitas tentativas anteriores de escrever sobre sexo e intimidade de uma perspectiva islâmica falharam diante da censura e das críticas. Em 2011, o médico paquistanês Mobin Akhtar tentou liberar o xucro Sex Education for Muslims apenas para ser interrogado por um funcionário público, rotulado de charlatão por seus colegas e bombardeado com ameaças por supostamente promover um discurso anti-islâmico. O autor muçulmano norte-africano do romance erótico The Almond (2004) usou o pseudônimo ‘Nedjma’ para minimizar o impacto desse tipo de contra-ataque, e criticou abertamente o discurso sexual moderno muçulmano como “desfigurado”. Educadores observadores, como Mohammad Shahidul Islam e Mizanur Rahman da Universidade de Dhaka, em Bangladesh, lamentaram que tudo isso deixa os professores tentando trabalhar de uma perspectiva muçulmana dependente de materiais seculares que podem não falar com eles ou suas comunidades quando tentam criar programas de educação sexual

Essa aparente falta [de publicações no campo] motivou Muladhat a escrever The Muslimah Sex Manual (O Manual do Sexo da Muçulmana). Ela havia notado jovens muçulmanos reclamando da relutância de seus amigos e familiares em falar sobre sexo por motivos religiosos – sobre obter lições rápidas sobre técnicas sexuais, mas nunca aprender sobre todo o espectro de desejo e atividade sexual antes de se casar. Muitos mais pareciam acreditar que a fé devota exigia “vidas sexuais maçantes e nunca se aventurar fora do sabor baunilha”. Esses amigos lhe disseram que seu conhecimento e abertura sexual eram únicos e valiosos. Tanto ela quanto a imprensa seguiram essa noção, promovendo seu livro como inovador.

Mas a “falta” que Muladhat e seus revisores notaram é na verdade um fenômeno recente. Desde o nascimento do Islã até cerca de 150 anos atrás, o mundo muçulmano foi um verdadeiro viveiro de conselhos sexuais explícitos, livres e eróticos que podem parecer tão quentes agora como sempre foram – um gênero comum e visível que chamo de ‘’sexologia islâmica’’. Na verdade, o Islã era tão aberto em relação ao sexo que culturas cristãs vizinhas menos abertas muitas vezes tentavam difamá-lo como a fé preferida dos desviados loucos por sexo. Já em 962, a escritora cristã Rosvita de Gandersheim na Alemanha escorraçava o recém-falecido califa Abd al-Rahman III de Córdoba e seus compatriotas em A Paixão de São Pelágio como '’debochados pelo pecado da sodomia'’ e '’poluídos com a luxúria da carne '.’

Nem todos os conselhos da sexologia islâmica envelheceram bem – como a insistência de Ibn Sina (o Avicenna), polímata persa do século 11 e pai da medicina e filosofia modernas, de que enfiar uma pimenta na vagina de uma mulher após uma relação sexual desprotegida era tão eficaz quanto qualquer ‘plano B’. A maneira como os escritores muçulmanos ao longo dos tempos falaram sobre a penetração anal masculina como inerentemente castradora ou patológica, para não mencionar uma série de outras temáticas comuns sobre gênero e sexualidade, também certamente colide com os valores seculares e progressistas modernos. Mas alguns conselhos comuns, como os apelos para que os homens explorem mais preliminares e aprendam sobre a anatomia e os orgasmos femininos, bem como a maneira como a sexologia islâmica vê o sexo como uma fonte de prazer por si só, diversa e aberta à exploração e experimentação, são tão valiosos agora como sempre foram.

A sexologia islâmica desapareceu da consciência popular em face de uma maré crescente de conservadorismo religioso, que influenciou a maioria das comunidades islâmicas modernas até certo ponto. Todavia, ela nunca desapareceu totalmente. Muitos muçulmanos hoje assistem ou se envolvem em debates e conversas sexuais contundentes liderados tanto por figuras relativamente conservadoras, como Heba Kotb, que apresenta um programa de aconselhamento sexual na TV egípcia, quanto por educadores abertamente queer e progressistas, como Wazina Zondon nos Estados Unidos e ativistas que trabalham dentro de uma estrutura islâmica como Helem no Líbano ou Nazariya na Índia. Eles não apenas dão a ativistas sexuais seculares, educadores e escritores uma utilidade para seu dinheiro, mas destacam uma quantidade incrível de diversidade que explode estereótipos dentro da Fé.

O sexo aparece nos primeiros textos religiosos do Islã: o Alcorão, a Palavra direta de Deus, e nos hadiths, histórias instrutivas dos feitos e ditos do profeta Muhammad transmitidas oralmente por meio de seus companheiros mais próximos, embora escritas apenas cerca de 150 anos após sua morte no século VII da Era Comum. O Alcorão transmite todo tipo de valores abrangentes que se pode esperar de uma fé abraâmica, como advertências contra o sexo fora do casamento e endossos de modéstia e castidade públicas. Mas dezenas de hadiths oferecem interpretações proféticas concretas, muitas vezes sinceras e detalhadas, sobre sexo e sexualidade.

Numerosos hadiths sugerem que os novos muçulmanos frequentemente perguntavam ao profeta o que suas conversões significariam para suas vidas sexuais. Muhammad respondeu com palestras sobre, entre outras coisas, consentimento, preliminares e o valor de manter a compaixão e a diversão na cama. Um homem, ele enfatiza em pelo menos uma dessas tradições, deve certificar-se de que sua parceira esteja satisfeita antes de si mesmo. Isso é apenas parte do que é ser um bom muçulmano. Ele também falou a seus seguidores sobre coisas como os méritos do método de abstinência, e até mesmo declara o bom sexo sadaqa, um ato de mérito sagrado.

Em um relato curioso, o Profeta repreende um homem que, em um ânsia por piedade, dedicou sua vida ao jejum e à oração – e desistiu do sexo no processo, para consternação de sua esposa –. Abandonar o dom divino do bom sexo é uma afronta, o Profeta parece sugerir. A maioria dos especialistas concorda, com base neste e em hadiths semelhantes, bem como em versículos-chave do Alcorão, que Muhammad acreditava que as mulheres têm direito ao prazer sexual, e seus maridos têm a obrigação de cumprir esse direito, se puderem. Se uma mulher não está obtendo satisfação sexual pelo menos uma vez a cada quatro meses quando tem um parceiro e quer fazer sexo, dizem os intérpretes, ela tem motivos para se divorciar dele e procurar um parceiro sexualmente mais generoso ou compatível.

Embora os estudiosos islâmicos tenham compilado milhares de hadiths cobrindo uma série de tópicos sexuais em detalhes granulares e os tenham apresentado como o guia principal da vida e dos valores islâmicos, esses relatos não podem e não cobrem todas as facetas da vida humana. As autoridades islâmicas também discutem até hoje sobre a autenticidade de certos hadiths, admitindo que as contas muitas vezes se contradizem e que isso pode ser devido a transmissões inexatas ou mesmo inventadas. Um hadith, por exemplo, declara que qualquer um pego dormindo com um animal deve ser morto. Outro diz que não é grande coisa.

“O Islã não tem Vaticano para determinar o que é normativo”, explica Tim Winter, também conhecido como Shaykh Abdal Hakim Murad, um estudioso muçulmano britânico e conselheiro de casamento islâmico. Portanto, ninguém pode colocar as disputas sobre o significado preciso das fronteiras sexuais do Islã para a cama.

Essa falta de certeza alimentou séculos de debate sobre como examinar e interpretar corretamente os ahadith, extraindo a essência dos relatos ‘mais válidos’ para aplicá-los a tudo sob o sol, incluindo sexo. Dos tempos medievais aos modernos, os estudiosos islâmicos se sentiram obrigados a dissecar, debater e decidir sobre os detalhes de cada ato ou dinâmica sexual para descobrir como Deus e Seu Profeta teriam lidado com isso. E não apenas estudiosos obscuros. Os fundadores de cada madhhab, ou principal escola jurisprudencial islâmica de pensamento, trabalhando nos séculos IX e X, e seus sucessores, exploraram os detalhes do sexo e da sexualidade de maneira profunda em suas obras. O proeminente estudioso religioso egípcio do século XV Al-Suyuti escreveu pelo menos 23 tomos sobre sexo e sexualidade. "Descrições explícitas e práticas e recomendações sobre técnicas sexuais são sempre incluídas nos manuais de lei e ética [islâmicas] até hoje.”, diz Winter.

Ao longo dos séculos, estudiosos religiosos têm ido e vindo sobre o que os textos sagrados e tradições centrais significam para uma série de atos sexuais, incluindo sexo anal, diz o economista Junaid Jahangir, que leciona na Universidade MacEwan, no Canadá, e estuda sexo e sexualidade em textos islâmicos. O Alcorão conta a história de Lut (nome árabe de Ló), usado para condenar o sexo anal na maioria das religiões abraâmicas; alguns hadiths chegam a afirmar que Muhammad declarou expressamente que o sexo anal não é conduta islâmica.

No entanto, os estudiosos há muito discutem – em detalhes explícitos – sobre como exatamente o o sexo anal é inadmissível aos olhos de Deus. Do século IX ao XII, Jahangir aponta, pelo menos uma escola de estudiosos sunitas argumentou que a impureza das fezes e da cavidade anal, e a suposta dor envolvida para os parceiros receptivos devido à falta de lubrificação natural, tornam o sexo anal desagradável – mas que é makruh ao invés de haram. Ou seja, Deus não gosta de sexo anal e exorta enfaticamente que o evite, mas não o proíbe de fato ou o mantém [para ser usado no Dia do Juízo] contra os praticantes. Mesmo quando os textos sunitas se desviaram para posições anti-anais mais radicais, a maioria dos estudiosos xiitas sustenta que anal é desaconselhável, mas permissível, desde que uma parceira receptiva concorde e deseje isso.

Mesmo entre os estudiosos sunitas que condenam o sexo anal, observa Jahangir, alguns discutiram entre si, e ainda discutem até hoje, sobre onde exatamente começa a ‘impureza anal’ e o ‘sexo inadmissível’. Não há problema em tocar ou lamber a parte externa do ânus de um parceiro? Se alguém permite a estimulação anal externa, quando é que se cruza a fronteira para o ‘’dedilhado interno’’?

A partir do século IX, intelectuais muçulmanos como o autor bagdali Al-Jahiz e o médico Al-Razi, lembrado por seu estudo sobre varíola e sarampo, desenvolveram uma corrente distinta de literatura sexológica: 'ilm al-bah (árabe para 'conhecimento do coito”). Embora muitas vezes serem tidos por obras religiosas, esses livros, incluindo a Enciclopédia do Prazer do século X, do médico de Bagdá Ali ibn Nasr al-Katib, oferecem conselhos pragmáticos baseados em experiências e observações vividas sobre sexo, bem como entendimentos científicos da época.

A Enciclopédia de Al-Katib é baseada no exame que o médico grego do século II, Galeno, conduziu em sua própria filha, que preferia sexo com mulheres a sexo com homens, para tentar explicar o lesbianismo como resultado de uma coceira vaginal que só pode ser coçada pelos fluídos de outras vaginas. Ele cita Sócrates para construir um caso para o sexo comunicativo e as ‘glórias’ da ‘conversa suja’, e delineia as supostas glorificações das comunidades árabes beduínas contemporâneas ao desejo casto por figuras queridas distantes para rejeitá-lo, argumentando que a relação sexual é essencial para um bom relacionamento. “Coito”, afirma ele, “dá fogo à alma, alegria ao coração, renovação à intimidade.”

Muitas vezes, as obras de 'ilm al-bah oferecem resumos de posições e atos sexuais com e sem penetração, afrodisíacos e até produtos propostos para aumento do pênis e aperto vaginal, bem como guias abrangentes para a etiqueta do coito. Obras como O Canone de Medicina de Ibn Sina, transmitem esses insights por meio de listagens secamente dispostas. Outros usam narrativas e poemas. Em O Anel da Pomba, o poeta e filósofo andaluz do século XI, Ibn Hazm, reflete sobre a potência do amor em estágio inicial através da história de "um homem que estava profundamente ferido de desejo por uma donzela que habitava uma residência próxima à sua", e que, ao saber que iria ver e ficar com essa mulher, fica “louco e quase delira de prazer; seu discurso era pouco coerente.”

Baseados na experiência vivida, os autores de ‘ilm al-bah frequentemente descrevem, ou mesmo promovem, atos e dinâmicas sexuais – como o homoerotismo – que os textos religiosos parecem descartar. O Qabus-Nama – um guia de vida do século 11 escrito por Keikavus, o governante do Tabaristão, para seu filho, Gilanshah – passa um capítulo abordando os prós e os contras da heterossexualidade e da homossexualidade, acabando por ser favorável à bissexualidade. Um dos livros mais famosos de 'ilm al-bah no mundo moderno é ‘’O Jardim Perfumado’’, compilado por um estudioso berbere conhecido como Al-Nefzawi por encomenda de um governante de Túnis do século XV. Além de seus capítulos sobre gírias para genitália e “receitas para aumentar as dimensões de pequenos membros e torná-los esplêndidos”, oferece um capítulo sobre as alegrias de dormir com homens em oposição a mulheres.

Paralelamente a 'ilm al-bah, poetas de todo o mundo muçulmano também desenvolveram uma rica (muitas vezes homo) erótica tradição, desde as obras do século IX do poeta árabe-persa Abu Nuwas, que se deleitam com a beleza dos jovens, até os de Rumi, o místico e religioso persa do século XIII. Poeta profundamente devoto, Rumi às vezes transmitia ideias sobre a busca pela divindade através de contos sexuais obscenos, cômicos e surpreendentemente detalhados, como aquele em que uma mulher pega sua empregada desfrutando de sexo com um burro. Invejosa de seu prazer, a mulher fica sob o burro e o induz a penetrá-la. Mas ela ignora a sugestão de sua empregada de usar uma cabaça para limitar a profundidade que o burro pode empurrar. O jumento “empurrou para dentro de seus intestinos, e sem uma palavra, ela morreu.” Tal é a importância, nos diz Rumi, de atender às palavras de um professor - mesmo que esse professor pareça humilde - ao buscar o êxtase, religioso ou físico.

É difícil dizer como as pessoas no passado viam essas diversas vertentes do pensamento sexual ou as aplicavam em suasvidas pessoais. Amanullah De Sondy, especialista em história da sexualidade no mundo muçulmano, da Universidade de Cork, suspeita que isso variou substancialmente ao longo do tempo e do espaço, e de indivíduo para indivíduo. Alguns leitores podem ter rejeitado a literatura erótica e tratados científicos, e buscado apenas manuais religiosos conservadores para orientação sexológica. No entanto, sabemos que algumas figuras religiosas se sentiram à vontade para criticar, digamos, o sexo anal em textos religiosos, mas depois ler, escrever e falar sobre homoerotismo de forma mais tolerante em outros contextos. Também sabemos que a maioria dessas obras estava em circulação ativa na maior parte do mundo islâmico por séculos.

Circumbulando e muitas vezes referenciando um ao outro, esses trabalhos juntos formaram uma linha rica, diversificada e aberta de diálogo e cultura sexual: o amplo campo da sexologia islâmica. Como a maior parte desta obra foi escrita por e para homens em contextos predominantemente heterossexuais, observa Habeeb Akande em A Taste of Honey (2015), ela tem muitas limitações e pontos cegos. Todavia, essa tradição sexológica refletiu e abriu espaço cultural em potencial para um conjunto impressionante de desejos e práticas sexuais – até mesmo atos e identidades que as leituras consensuais estritas da lei islâmica parecem consistentemente proibir, como homoerotismo, arte pornográfica, sexo fora do casamento e assim por diante.

Isso não quer dizer que todos no passado islâmico eram libertinos, discutindo abertamente ou abraçandotudo aquilo que fora escrito. No passado, assim como hoje, era possível encontrar pessoas que apenas se sentiam desconfortáveis em lidar com sexo, ou adotavam uma postura ainda mais conservadora do que os textos religiosos rigorosos exigiam. Nem todos os textos em sexologia foram igualmente populares ao longo do tempo e em todas as regiões, à medida que as ondas de repressão sexual diminuíam e fluíam.

Caso em questão: o Alcorão e os hadiths reconheceram a existência de mukhannathun, um termo que significa 'homens efeminados', mas provavelmente aplicado na época a alguns ou todos aqueles que agora chamamos de homens femme que fazem sexo com homens, mulheres trans, não-binários e intersexuais. Enquanto a sociedade árabe há muito aceitava os mukhannathun em espaços sociais muito limitados, e os primeiros muçulmanos pareciam pelo menos tolerá-los (em graus variados), muçulmanos poderosos como Marwan ibn al-Hakam, o quarto califa do império omíada, e seu irmão Yahya finalmente decidiu que eles eram profanos. Enquanto servia como governador de Medina, um dos irmãos executou um mukhannath proeminente e colocou uma recompensa pela cabeça de todos os outros mukhannath em seu distrito. Governadores e governantes posteriores recuaram ou aumentaram essa perseguição.

Mesmo em sua forma mais tolerante, no entanto, as comunidades muçulmanas só toleravam atos homossexuais ocasionalmente – e, principalmente, em espaços privados –. O pensamento islâmico por muito tempo pintou homens que gostavam de penetrar homens como sujeitos hipersexuais; homens que receberam penetração como vítimas de uma doença; e mulheres que preferiam encontros sáficos como traição ao ideal feminino. Assim, embora os poetas pudessem escrever poemas quentes e pesados sobre a forma masculina jovem ideal, nunca houve lugar para dois indivíduos do mesmo sexo viverem abertamente como um casal.

Em suma, enquanto a diversidade da sexologia islâmica fomentava poços amplos e profundos de conhecimento erótico, as comunidades muçulmanas só as vezes toleravam atos homossexuais e outros atos não-normativos – e, principalmente, em espaços privados –.Os escritos, no entanto, ajudaram a apoiar a vida das pessoas a quem De Sondy se refere como “muçulmanos indisciplinados” – por exemplo, Mirza Ghalib, o licencioso poeta mogol do século XIX. “Ele era casado e tinha muitos filhos”, explica De Sondy. "Ele também frequentava cortesãs e andava publicamente bebendo álcool."

Apesar de tudo isso, a sexologia estava praticamente extinta na maior parte do mundo islâmico em meados do século XIX. Intelectuais, funcionários do governo e outros porteiros culturais começaram a descartar muitos textos existentes e banir ou suprimir outros, para promover valores sexuais castos e erradicar o que cada vez mais viam como ‘obscenidade doentia’. Se os poetas continuassem a escrever sobre os amados, eles começariam a se certificar de que, como homens, eles escrevessem apenas sobre mulheres graciosas, no mínimo, observa Jahangir.

O que aconteceu com essa rica tradição sexológica? Em uma palavra, o colonialismo. Jahangir explica que, à medida que as potências europeias começaram a dominar ou ter controle direto sobre as terras islâmicas no século XIX, os pensadores muçulmanos adotaram duas mentalidades divergentes: mas ambas igualmente anti-sexo. Uma escola de pensamento sustentava que o Ocidente poderia dominar o Islã cultural e moralmente apenas porque estava fazendo algo certo. Assim, para sobreviver e prosperar, as sociedades islâmicas teriam que imitar a Europa. Isso levou alguns a adotarem costumes sexuais europeus conservadores do tipo que fizeram as autoridades britânicas vitorianas definir, censurar e processar sistematicamente “desvios” como homossexualidade e pornografia. Outra escola de pensamento sustentava que Deus permitiu que o Ocidente ascendesse como uma forma de punição pela decadência islâmica – uma visão que ainda sustenta interpretações conservadoras das escrituras islâmicas e ideologias radicais em todo o mundo muçulmano. Naquela época, como agora, essas formas severas do Islã não tinham espaço para um diálogo sexual aberto e diversificado. As repercussões dessa mudança cultural, argumentam Jahangir e outros, ecoam até hoje, tanto nas comunidades muçulmanas quanto além. Os críticos do Islã muitas vezes combinam a linguagem dos conservadores mais radicais com suas próprias leituras estreitas de textos islâmicos escolhidos a dedo para defender que o Islã promove estupro conjugal, violência misógina e pedofilia. Mas mesmo quando a sexologia islâmica desapareceu da esfera pública e o conservadorismo sexual surgiu, tal gênero nunca morreu. Afinal, como diz De Sondy, “o Islã sempre manteve uma tradição de contra-narrativa.” A fé não apenas resiste à codificação, ela prospera no debate e na evolução (para desgosto e negação dos linha-dura).

Na realidade, os estudiosos religiosos islâmicos nunca pararam de debater os detalhes dos atos e dinâmicas sexuais. Eles emitiram decisões recentes sobre tudo, desde a pílula do dia seguinte (permissível, argumenta um estudioso, desde que aqueles que a tomam não acreditem que conceberam um filho) até a orla anal (permissível, diz outro estudioso, pois não envolvem penetração). Em 2019, um candidato a doutorado na Universidade Islâmica do Estado de Sunan Kalijaga, na Indonésia, causou polêmica ao apresentar um argumento jurídico-teológico islâmico de que o sexo fora do casamento é permitido, desde que ocorra a portas fechadas. A pressão dos principais estudiosos conservadores o forçou a retirar essa posição ou arriscar seu diploma. “Ao estudar no Cairo”, acrescenta Winter, “descobri que os imãs das mesquitas tinham um suprimento ilimitado de ‘piadas azuis’ (“piadas sujas”). Estas não foram levadas ao púlpito, mas ainda assim foram vistas como socialmente aceitáveis.”

Escritores como Mohamed Choukri no Marrocos e Tayeb Salih, originalmente do Sudão, mas mais tarde um ‘cidadão global’, criaram retratos crus e íntimos de sexo e sexualidade em seus romances de meados do século XX. Choukri especialmente tinha um talento especial para escrever sobre homoerotismo e masturbação. É vero que isso fez com que seus livros fossem proibidos no Marrocos e em várias outras nações de maioria muçulmana por anos. Mas, claramente, as experiências que o levaram a escrever sobre sexo e sexualidade continuaram uma linha muito mais antiga de pensamento erótico, mesmo que sob uma pesada nuvem de censura.

Especialmente na década anterior, os muçulmanos de todo o mundo trouxeram a sexologia islâmica de volta aos olhos do público, seja por meio de livros como The Muslimah Sex Manual ou programas de TV como The Big Talk no Egito. Embora a maioria deles tenha uma abordagem heteronormativa e reservada do sexo, eles carregam o espírito do diálogo sexual franco e vibrante do passado. Como Akande aponta, vários livros de mulheres muçulmanas, como Sex and the Citadel (2013) de Shereen El-Feki e The Proof of the Honey (2009) de Salwa Al-Neimi, “recorrem à literatura erótica árabe clássica” para informar leitores muçulmanos modernos. E os muçulmanos queer estão ativamente engajados em abrir espaço dentro do Islã para diversas identidades sexuais e de gênero no mundo moderno. Eles afirmam sua existência, insistem em manter uma identidade islâmica e mostram como é fácil conciliar sua identidade sexual e a fé.

Vários estudiosos islâmicos com quem falei para este ensaio me alertaram sobre o perigo de cobrir a história do diálogo sexual islâmico. É fácil, eles notaram, construir, em uma página ou em nossas mentes, mitos de eras douradas perdidas de abertura e aceitação sexual imperfeitas, mas louváveis. É igualmente fácil para os críticos do Islã transformar esses mitos em munição - prova de que, embora o Islã possa ter sido uma grande fé, o Islã moderno é um perigoso monólito regressivo, puxando o mundo para a ruína, e que devemos lamentar seu passado enquanto fazemos oposição a seu presente.

O objetivo de lembrar a história da sexologia islâmica não é glorificar ou demonizar o passado ou o presente. É reconhecer que qualquer estereótipo sobre o Islã e sexo, especialmente aqueles que o pintam como uma religião de puritanos, é míope a tosco, construído em entendimentos estreitos de lascas claras, mas finas, de um momento específico na história da literatura e da vida islâmica.

Esse tipo de história nos lembra que as fés religiosas são dinâmicas. Não são simples códigos de conduta, sexuais ou não, mas compostos de diversas linhas de diálogo, todas girando juntas, subindo ou descendo com as marés do tempo e do acaso. Isso significa que não apenas o Islã, mas praticamente todas as religiões têm o potencial de ser sexualmente abertas, inclusivas e esclarecedoras – ou restritivas, excludentes e estupefatas.

Fonte: aeon.com